17 de abril de 2006

O olhar de um cão sobre tudo.

Os seus trabalhos Matheus tendem a escapar do universo da pintura e de toda a mentalidade da mistura das cores. Faz justiça na escolha da cor pura. A cor pura, na intenção premeditada alude a linha do lápis.
Duas formas importantes de se expressar apresentam-se claramente; o desenho puro a lápis e a pintura colorida pela água. O seco (desenho) e o úmido (a pintura). Duas avenidas.

Pintura Mãe - 2005
Acrílica sobre eucatex - 1,30 x 0,90 m
Mas aonde encontram-se, os seus olhos de colorista?
Devo lhe dizer que no desenho, você literalmente abandona a “cor” em detrimento da chuva prateada que o lápis de grosso calibre exerce sobre o papel. Criando formas densas de um amplo carbono, exercendo a pressão do grão sobre a folha de papel e esmagando o grafite até obter um negro (fragmentos de galhos, círculos, casas, portos, navios e outras estruturas de seu interesse) ganham luz. Ganham a atmosfera de céus e de ar, de ausências que são importantes na escolha e no olhar em direção para essas “estruturas”. Como nas plantas o encanto sutil, para fractais existentes vistos na natureza são compreendidos, de maneira direta e sensível, pela linha de lápis feito “farpas” contornando e esfiapando, toda a densidade da madeira ou outra coisa qualquer que represente na folha de papel. (textura e veios). O desenho, torna claro as intenções espaciais do pintor. Nele, não existe mais a intenção multicolorida na preparação de uma “paleta” para ser despejada na superfície da tela. A coisa apresenta-se drasticamente mais simples e disponível, para o alívio de seus olhos e tensão, de suas mãos.
A linha pura sobre o papel é a linha preta que faz a textura dos objetos como o olhar de um cão sobre tudo.


Cadernos
Na série dos “troncos” que estavam abandonados sobre as águas do mar, (tão lisos e polidos eles ficaram) desenhados no seu caderno, envolvidos pela linha salgada do lenho, alisando aquelas carcaças, aquelas formas que mais pareciam “ossos enterrados na areia”.
Mangue 3 - 2005
Garfite sobre papel - 0,20 x 0,30 m
Nas folhas de papel haviam apenas o desenho das “costelas de madeira” e não a água do mar. Não havia a necessidade das ondas pois os troncos, a forma com que foram desenhados, sugerindo os detalhes, tudo conformou-se na seguinte questão;
Os troncos foram “lambidos”. Depois ficaram submersos em uma grande língua. Sugados pela maré, iam e vinham como ossos na boca de um cão, na constante cosmológica da linha que não para, ilude e é cinema e um pouco de fotografia, demonstrando o movimento.
Não havia por que desenhar o monstro que era o mar. Você fez os despojos de um jantar noturno, os fragmentos de uma árvore, apenas o seu tronco. Aquilo que sobrou e emergiu da saliva.
Ulysses, 17 de abril de 2006.

Introdução a Pintura e o Desenho

Pintar é uma mistura de cores incessantes. Misturar e ser absorvido entre a tela, o ar e o cavalete, o pintor está comodamente acolchoado em um manto cheio de lantejoulas. As lantejoulas luminosas que se desprendem das dobras deste manto criam um caminho, para ser percorrido somente pela sensação luminosa em terrenos pantanosos (em massas, sobreposições e arranhões de toda a espécie) no desespero de encontrar uma pérola em uma superfície cheia de lama.
Depois, com o trabalho concluído (um verdadeiro terreno trabalhado, com o sabor das dores dos dedos se apresenta) e o pintor percebe a chegada da luz (verdadeiramente) na secagem da tinta. Incrível! Eis a sua pérola, na concha ainda aberta para o beijo úmido da luz que ligeiramente, torna-se opaca. É bem sensível a mudança de estado das formas observadas na pintura. O pigmento desloca-se silenciosamente e em “bandos” até encontrar o seu lugar entre os grãos do papel ou nas filigramas acinzentadas do linho (a alpargatas de caminhoneiro) assim como as aves escolhem no final do dia um galho entre as árvores, para passarem a noite.
A pintura encontra-se nos reinos líquidos e secos. Uma passagem de luz sobre um terreno construído e a secagem. Uma estiagem lenta, como a mudança das estações. A pintura possui a densidade das nuvens sobre uma montanha (um gesto nítido de nanquim) o peso do mar e da igreja azul do céu, nos violetas, laranjas, brancos e rosas entre as dobras da terra, nos campos lavrados e cultivados do agricultor, entre os planos, entre as tempestades nos caminhos tortuosos do andarilho, nos círculos do sol e na luz da lua, em toda a atmosfera em que os olhos pousam no lugar perfeito, para a observação da paleta particular do pintor. Uma visão da natureza. Uma pose ereta diante do cavalete.
O pintor está sobre uma pedra. Nos ombros um manto colorido e nos pés cogumelos. Assim firme, o pintor sonha e percebe a “mudança” atento em frente a um grande papel na qual escorre a tinta. Na visão deste tipo de artista no plano, cria-se um lago onde antes não havia nada, só os brancos, somente os pontos luminosos de bocas abertas para o ar. A pintura reage entre a umidade e a sensação da secagem, petrificando a paisagem, reagindo a uma mudança natural na passagem e no deslocamento íntimo dos pigmentos.


*

O desenho é o oposto da pedra. O desenho é o movimento “suave de uma tempestade” O desenho a lápis é a própria tempestade de nervos acinzentados que alimentam um rio sobre o papel. Tudo está relacionado com as linhas que moldam as formas, contornam a luz e criam barreiras instintivas no suporte, dando origem a espaços, como a água que jorra durante muito tempo em um rochedo. O lápis cai com a ponta sobre a folha como uma gota fria de chuva. Ali o grafite germina, deslizando em um corpo nu e branco. Inventa espaços. Sonha com limites rabiscados tendo como morada requintada um ponto de interrogação. E neste ponto, no gesto tosco de uma mão em equilíbrio constante com a grafia está, em certo sentido, a tensão luminosa. Sim o grafite reflete a luz e entre os minúsculos pontos existem passagens secretas nos tons de cinzas. São pequenas portas que abrem templos ocultos na lenta passagem granulada da luz, provocada pela vibração dos dedos, do pulso e de todo o braço do desenhista. Um aríate que arromba bruscamente as portas e libera a luminosidade para dentro de aposentos de cristal.
O desenho é a condução vibrante em direção a mundos inimagináveis, habitados por espíritos tensos e secos. Diferente do pintor o desenhista encontra-se nu, subindo livre as escarpas de um monte berrando e abrindo os braços no ar. Pode ser comparado a um louco que se atira ao mar, querendo ser um atum, querendo estar sempre vivo em uma corrente e em um “fluxo” para depois, ser atirado de volta na terra. A linha feita de lápis possui os desejos líquidos da água pura que seca. A luz passa através de uma corrente de sensações íntimas abertas no sangue. E o sangue ( líquido que coagula) é outra densidade vital que anima os músculos e os nervos para o movimento e situa-se entre o grão do lápis (nervos e tendões das mãos) até o saber. Existe, na observação dos espaços maculados pelas formas e pelos cheiros (aliados à memória) que escava o olhar, para depois emergir, como magma no ato simples do desenho, uma espécie de sabedoria que só é revelada pelo traço continuo e honesto. Requer certa habilidade no trato com esta linha pura, a primeira sobre a virgindade do papel. Esta “habilidade” só é adquirida com o tempo. Enquanto que a pintura utiliza-se de massa infante, para criar a realidade aplicada à outra realidade (a das cores), o desenho torna simples a observação de um “módulo”, uma forma composta exclusivamente por linhas. O módulo (a paisagem ou o corpo) ou nenhuma destas duas vertentes de representação insular mas apenas o “registro taquigráfico” de um movimento, em uma escala de valores acinzentadas próximos da pintura, (mas infinitamente distante dos seus propósitos) o desenho emerge. Cresce no gesto seco e preciso de um astrônomo que busca no céu os pontos cardeais e lá os encontra, solitários no cosmo. A pintura e o desenho possuem uma solidão diversa. Um contraponto premeditado pela vontade bruta (ou delicada) de se expressar nos valores tênues do coração. A linha conduz a emoção irrigada dos sentidos simples do papel. Toda a vida mundana, cotidiana, pode enquadrar-se nos gestos feitos a lápis de um diário. O desenho é o próprio diário desprovido de qualquer outra coisa a não ser a linha, o espaço e o tendão.


Ulysses, 17 de abril de 2006.

3 de abril de 2006

A folha dupla, a folha tripla...

...em um jardim cheio de pés de mamão. Tão perto, as folhas tão verdes e amarelas, azuis contra o sol. Erguemos a cabeça e contemplamos a copa de uma árvore no quadrilátero pequeno da tela e a explosão dos galhos (apenas os detalhes) em busca do beijo da luz. O arco íris íntimo, a criação das cores pela sobreposição de camadas de tinta acrílica.


Palmeiras, pés de abacate e outras árvores espalhadas na cúpula infantil, tão infantil que até duvidamos por um momento do talento do pintor. Eis as folhas coloridas de um dia de sol forte, a copa erguida na grande árvore que espanta a criança e encanta o corante sonhador dos olhos raros do daltônico. Por esta qualidade de criança (memória) e de adulto (a paleta particular do pintor) que possui a incapacidade para diferenciar certas cores, em especial o vermelho é que, pela escolha da tinta acrílica (mais fácil de se misturar) o artista cria a imagem nítida de copas, juntando-se em uma estranha floresta em que as folhas possuem as formas de frutas tenras e macias. As cores (por vezes puras) extraídas limpas dos tubos como polpa suave, vão encontrando o seu caminho na tela, diluídas na água, entrando no tecido e secando após delicados gestos úmidos.

Chuva e sol. Nasce uma planta. Cria-se um caule, multiplicam-se os galhos na certeza das cores puras. O pintor daltônico evita muitas misturas. Como se pintasse com os dedos uma parede de azulejos. Da pequena série de plantas que eu vi, nenhuma possui a estirpe pequena de um vaso encostado na porta de uma casa ou na varanda, ali solitário a espera do sol. Não. O que vi foi um passeio largo por um jardim de árvores altas. As telas pequenas alcançam o vasto e provocam água na boca, pelas folhas e os frutos ali realçados, pela cor pura.


Ulysses, 3 de abril de 2006.